terça-feira, 8 de abril de 2008

3ª feira, feira da ladra

Já não é a primeira 3ª feira desde que aqui cheguei que acordo a sonhar com a feira da ladra. Ponho a Valsa da Ana a tocar e penso na Lisboa profunda, nas pessoas que conheci nessa feira, os vendedores que todas as semanas "partem para a guerra com os olhos na paz". Foi numa dessas manhãs em que acordei às cinco da madrugada para vender as minhas roupas fora-de-moda que conheci o lado mais profundo da minha cidade, "trapos e cacos e contradições" escondidos pelas ruas de Alfama e da Mouraria. Depois lembro-me da "Caixa" e começo a megulhar numa epifania de miséria lisboeta que esteve sempre ali ao meu lado enquanto eu crescia nas relvinhas solarengas do jardim da Gulbenkian, do jardim da avó e do Príncipe Real. Entre as histórias mais tristes que me foram contadas na primeira pessoa, encontra-se a história de uma dessas senhoras, mulheres desdentadas de carrapito na cabeça e mamas descaídas até ao umbigo. Primeiro não gostou que montássemos o nosso estaminé ali ao pé dela, passou as primeiras horas da manhã a balbuciar "caralhadas" para dentro e para fora, enquanto o outro senhor ao nosso lado a provocava e dizia que ela tinha era falta disto e daquilo, "velha ordinária", "querias querias", "cala-te seu porco, se não fosses um ordinário tão grande a tua mulher ainda te aturava", "coitado do teu filho", e por aí fora. A Maria e eu estávamos no meio, ora a rir, ora à espera do momento em que a nossa banquinha se iria transformar no campo de batalha. Mas a batalha foi sempre de palavras. Nas últimas horas da manhã a mulher já falava comigo, conversávamos sem grandes confianças de coisas banais até que ela me mostra as fotografias que traz consigo numa espécie de livro-moldura de bolso. A primeira fotografia era uma mulher lindíssima a rir com cerca de 20 anos, anos 50. Era ela, acabada de chegar a Lisboa para trabalhar, pouco tempo antes de se casar. Quando digo que era lindíssima não estou a exagerar e era realmente a mesma pessoa. Depois o marido e depois os dois filhos. Os dois já mortos. O primeiro morreu com 20 anos, o segundo ja mais velho ainda lhe deixou um neto. "A droga, sabes... ninguém sabe. niguém sabe o que é uma mãe... (silêncio de olhos fixos em lugar nenhum) é uma desgraça, tu não te metas nisso. Era um menino tão lindo," mostra a fotografia do mais novo ainda criança loirinha de olhos azuis feito rapaz ao colo da mãe, "ai o meu menino". Tudo isto sussurrado, baixinho, sem barulho.
Sentimo-nos umas grandes negociantes nessa manhã, despachámos praticamente tudo o que trazíamos e voltámos para casa com 80€ no bolso cada uma. Mas o que eu trouxe comigo para sempre desse dia foi perceber o que quer dizer "vender mágoas ao desbarato". E desde que aqui estou em Saint-Etienne, não há terça-feira que não me lembre desta manhã e desta música. E sempre porque "é terça-feira e das cinzas talvez, amanhã que é quarta-feira haja fogo outra vez"...

9 comentários:

ana vicente disse...

Belo post, sim senhora, belle-soeur!

E é muito engraçado que a Feira da Ladra também tenha dia marcado em St.Etienne. Pelo menos na tua alma...

Aos sábados, talvez se vendam mais alegrias.

Isabel disse...

Como diz a avó cilinha tu és maravilhosa. Prometo que terça-feira vou à feira. Adoro-te

Matinhas disse...

Querida Matilde... as tuas recordações são nossas também... linda essa tua lembrança... o jardim da avó cilinha... o baloiço... os bolos "Princesa" que devorávamos antes que a tarde terminasse... os passeios nos jardins da Gulbenkian... lembro-me particularmente de uma noite de verão em que acabaste por adormecer no meu colo e te levei escadas acima da casa da Sá da Bandeira, sentindo-me a maior madrinha do mundo!!
Beijinhos da tua cidade!!

Matilde disse...

oh madrinha querida do meu coração, obrigada. pelo comentário e por me teres levado escadas acima que aquilo ainda era um bom 3º andar. não me lembro de nada, devia estar a dormir mesmo bem no teu colinho...

Cristina disse...

Querida Matilde, vem depressa para irmos às feiras todas desta cidade.Beijos

supercalli disse...

Olé Mathilde,
Muito bonito o teu texto. Fiquei comovida. A nossa memória funciona de um modo bizarro. Saudações de uma Lisboa em começo de Primavera que ora chove ora faz sol, mas com a melhor luz do Mundo!
Hoje à noite filmo na Lisnave mais uma noite da rodagem do W Scroeter. Ao nascer do dia prometo tirar uma foto para enviar-te um pouco desta bela luz.

Pinipom disse...

Esta é uma boa semana para te ir visitar... O que é que achas? De quarta para quinta ou so na quinta? Tenho uns onselhos de visitas a fazer...

Beijinhos

ana vicente disse...

já passou uma semana desde a feira da ladra!!!!

como é que é? não há notícias da frança? ansiosa por chegar? amanhã vais lá jantar a casa? eheheheh!!!!

eu também sei fazer o mesmo número...

Matilde disse...

A França é um tédio e os franceses uns preguiçosos... daí não haver notícias, agora já só penso em lisboinha lisboinha lisboinha, 5 dias que me vão saber pela vida. Quanto ao jantar, sim, estou a pensar em ir porque já vou passar o resto do dia com a família Pinhão Morisson, portanto acho que a noite pode ser Vicentina...